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‘Há esperança para começar de novo’: projeto muda vidas de mulheres dependentes químicas em penitenciária de Rondônia

Penitenciária Estadual abriga o projeto ‘Começar de novo’ por iniciativa do Ministério Público. Em Porto Velho, o CAPS AD atende mais de 14 mil pacientes dependentes químicos.

Por Loide Gonçalves


Foto de uma mão feminina na libertação das algemas físicas e na representação da liberdade da prisão das drogas / Crédito: Loide Gonçalves

Começar de novo. Uma frase que traz esperança e também nomeia o projeto que oferece oportunidade para mulheres retomarem o controle da sua vida depois de terem o perdido para a dependência química. Com o objetivo de “transformar vidas dentro do cárcere”, a Penitenciária Estadual Suely Maria Mendonça (PESMM), em Porto Velho, atende reeducandas e cuida da saúde mental e também espiritual de cada uma das mulheres que escolhem mudar.


Em outubro de 2024, o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas de Porto Velho (CAPS AD) registra 14.051 pacientes sendo atendidos com dependência química. A equipe multidisciplinar da instituição realiza em torno de 80 consultas diárias.


De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a dependência química consiste no abuso de substâncias nocivas ao organismo, que gera consequências tanto físicas como mentais. Álcool, nicotina, maconha, cocaína e crack são alguns dos exemplos.

“Eu achava que esse lugar era meu fim, mas…”

Atrás das grades e marginalizadas, muitas mulheres perdem a esperança. Com isso, surgem projetos nas unidades prisionais que têm como objetivo acolher e ressocializar essas pessoas. O “Começar de novo” aliou o tratamento psicológico com a espiritualidade e comunhão com Deus, visto que a fé é um instrumento de suporte e transformação pessoal. O trabalho é voltado para a dependência química, uma questão de saúde pública.


Os comuns 12 passos de Narcóticos Anônimos neste projeto acrescenta versículos bíblicos. No total, cerca de 15 mulheres da penitenciária recebem os encontros todas às segundas-feiras. A ação é uma parceria entre a Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) com o CAPS AD e o Ministério Público de Rondônia (MPRO).


Beatriz, de 24 anos, está no projeto há cerca de seis meses. Ela relembra que veio para Porto Velho em um contexto problemático. “Eu não sou daqui, sou de Ariquemes (RO), então quando eu vim pra cá [Porto Velho], eu vim para pagar um castigo, porque eu era muito rebelde na época. Ninguém acredita nesse meu outro lado que eu fui, né? Deus me mudou da água pro vinho, justamente através desse projeto”, conta sobre a importância das reuniões.


Nos encontros semanais, as reeducandas são atendidas com atendimentos psicológicos e psiquiátricos, além de musicoterapia e palestras educacionais.


Beatriz diz que a principal mudança desde a sua entrada no projeto aconteceu de “dentro para fora” e que tem aprendido a cuidar de si e do seu temperamento. “Algo que me motiva muito é essa passagem da Bíblia de Jó, que fala que ainda há esperança para a árvore cortada. Um dia eu fui como uma árvore sem esperança. Eu não tinha esperança, eu achava que esse lugar [a unidade prisional] era o meu fim, mas eu vi que ainda há esperança para começar de novo, uma nova vida, uma nova história… Esse projeto não servirá só pra mim, mas para minha família”, explicou emocionada.


A diretora da unidade prisional, Auricelia Gouveia, fala que é motivo de orgulho ver tantas mulheres que passaram pelo projeto e conseguiram começar a vida novamente, longe das drogas. “Algumas passaram no Enem e estão na Universidade Pública de Rondônia (Unir). Tem uma que não queria saber de estudar, não queria saber de nada. Com a mudança que o projeto trouxe para a vida dela, ela aos poucos se interessou em estudar. Ela dizia ‘eu sou do crime, para mim não tem jeito’ e eu falava que tinha. Hoje ela manda mensagem pra mim agradecendo. Está estudando, está bem e está procurando ser uma pessoa melhor”, disse.


A reeducanda Beatriz já sonha com o momento em que concluirá a sua pena e sairá da unidade prisional. Entre os planos já traçados, há o desejo de voltar ao presídio em um contexto diferente: como inspiração. “Se Deus permitir, eu estarei com eles para dar meu testemunho. Porque é uma vontade que eu tenho de vir aqui [na penitenciária] motivar outras pessoas que sentirem que não há esperança em seu coração, mas ainda há”, compartilhou.


Parceria e o fim do círculo vicioso


De acordo com Andrea Waleska, promotora de justiça, o “Começar de novo” é uma iniciativa do Ministério Público de Rondônia, órgão que também promove e é parceiro de vários outros projetos que acontecem dentro das unidades prisionais nos municípios do estado. A partir da necessidade de trabalhar a dependência química dentro das penitenciárias, houve um envolvimento de vários órgãos estaduais e municipais. “Elas ficavam em um círculo. Elas entravam na unidade, eram progredidas, saiam, tinham a dependência, acabavam voltando… Então é um círculo vicioso. A gente pensou nesse trabalho de tratamento dentro das unidades prisionais”, contou.


Além disso, a promotora também explica que os projetos que o Ministério Público é parceiro ajudam a minimizar a criminalidade, pois muitos crimes derivam exclusivamente da dependência química, como o tráfico, furtos e roubos.


“Dentro da penitenciária feminina o trabalho é muito importante. Muitas vezes elas são levadas ao crime justamente por causa dos seus parceiros. Tem todo um relacionamento abusivo. Elas precisam ter essa questão da autoestima resgatada. Por isso temos vários projetos de ressocialização, de capacitação para o mercado de trabalho, de resgate delas mesmo quanto mulheres e da saída dessa dependência não só química como também de não voltar para o crime”, ressalta sobre a importância.


Ações voltadas para as famílias das reeducandas também são realizadas. “Esse projeto também tem essa vertente de trazer a família, de sensibilizar e de auxiliar no tratamento. Quando você traz a família, essa pessoa se sente mais responsável também para ter o melhor resultado”, conta a promotora e fala dos inúmeros casos positivos de mulheres que, ao retornarem para a vida fora das grades, tiveram como base os estudos, trabalho e o apoio familiar.


“Quando perdi meu filho, eu me perdi”

Uma história com muitas cicatrizes. Greiciele Aguiar hoje tem 30 anos, mas sente na pele as dores de uma vida inteira. Ainda na infância, o pai não a quis. “Meu pai mandou minha mãe escolher entre eu e ele. Ela me escolheu, mas mãe solteira… logo casou de novo”, relembra as histórias que ouviu. Aos sete anos, foi aliciada pelo padrasto. Aos nove, violentada. “Eu tentei contar pra minha mãe, mas eu tive medo. Eu era uma criança. Ele me ameaçava, me batia muito”, conta.


Na adolescência, teve o seu primeiro filho. Depois passou por outra gestação e deu à luz a um casal de gêmeos. Quando o primogênito tinha quatro anos, Greiciele precisou vir para Porto Velho com ele para uma cirurgia. Enquanto cuidava do filho mais velho no hospital, em outra cidade, em Ariquemes (RO), seu filho caçula, de um ano, morria no colo da avó da criança.


“Eu saí e deixei meu filho vivo em casa. Sendo cuidado. A pior dor da minha vida foi quando eu virei a esquina da minha casa. Até eu chegar ali, eu achei que era mentira. Mas quando eu virei, tinha muita gente na minha casa. Lá da esquina, eu escutava os gritos da minha mãe. Foi ali que caiu minha ficha”, relembra com o rosto cheio de lágrimas de uma dor que nunca cicatrizou, mesmo após 15 anos.


Greiciele lembra que depois disso veio a depressão, a falta de ânimo e que viu seu casamento ser destruído pelo luto. “Tudo que eu ia fazer com ela, eu lembrava dele. Eles eram iguais. Eu estava matando minha filha na época. Eu vestia as roupas dele nela… Eu saí de casa e fui morar no cemitério. Ficava lá, sem tomar banho, com fome… Eu me joguei. Comecei a ficar nas ruas. E foi nesse momento que comecei a morar nas ruas e me entregar para o crack”, contou.


Em 2019, Greiciele se envolveu com o crime e foi presa pela primeira vez. Entre idas e vindas, ela conta que a última passagem pela penitenciária foi decisiva e importante. “Me chamaram para ir para o projeto e eu não queria ir. Cheguei a tentar suicídio. Até que decidi conhecer. Comecei a me interessar nos cultos. Os encontros e também a Dona Tati [a psicóloga da unidade que a acompanhou por quase cinco anos] foram muito importantes. Eu ainda participo aqui fora. Eu tenho para mim que eu fui lá nessa última vez só pra conhecer o projeto e me salvar. Nesse retorno, eu passei três meses e fui absolvida”, explica a sensação de alívio.


Poucos meses livre, já deu importantes passos para recomeçar. Greiciele segue indo nos cultos e também sabe da importância de continuar o tratamento psicológico, garantido pelo projeto agora diretamente no CAPS AD. “Tá sendo muito diferente, eu realmente sinto que ganhei uma oportunidade de ouro e pude começar de novo”, diz ao mesmo tempo que fala animada sobre o emprego que já está atuando em uma instituição de ensino.


“Dona Tati”, citada por Greiciele, na verdade é a forma carinhosa de chamar Tatiane de Oliveira, psicóloga da Penitenciária Estadual Suely Maria Mendonça, que lembra com carinho e emoção nos olhos a história de Greiciele.


“A mudança vem de dentro para fora, isso a psicologia fala. Ela está trabalhando, está no convênio. Ela tem uma história de vida muito sofrida, sozinha… Você sai daqui [unidade prisional] e vai pra onde quando não tem ninguém? Só de escutar a voz dela [da Greiciele]... A voz dela está completamente diferente. É uma voz de ‘eu estou tão feliz, eu consegui!”. Ela já está fazendo planos para o fim do ano, para um curso que ela quer fazer”, contou.


A psicóloga também explica que o mesmo atendimento dado a Greiciele, ela oferece para todas as outras que estão na penitenciária. A diferença de muitas é que Greiciele procurava constantemente por ajuda. ”Eu saio de lá sempre muito tranquila, eu fiz a minha parte. Elas precisam estar abertas para receber e colocar em prática na vida delas. Já trabalhamos com algumas que aqui fora mudaram a rota da vida, a gente sabe que tem o seu salão, tem um churrasquinho… Estão tocando a vida. Tem outras que infelizmente ficam no círculo vicioso. Sai, volta pro presídio, sai, volta pro presídio… A gente continua tentando. A gente acredita que uma hora essa pessoa vai conseguir e não vai voltar mais.”, comentou.


Saiba como procurar ajuda em Porto Velho


Além do projeto acontecer dentro da penitenciária, em Porto Velho o CAPS AD também oferece as reuniões todas as sextas-feiras, às 9h da manhã no auditório do Centro de Atenção Psicossocial. Qualquer morador pode participar dos encontros.


A Prefeitura da capital tem o espaço como “ferramenta de tratamento para pessoas que realizam uso abusivo de substâncias psicoativas e conta com um serviço totalmente gratuito para os que procuram a unidade”.


Segundo o CAPS AD, não há necessidade de agendamento prévio ou encaminhamento médico para procurar atendimento pela primeira vez ao notar a necessidade. A atuação acontece com uma equipe multidisciplinar e o paciente pode utilizar todas as ferramentas disponibilizadas pelo centro, como: consultas psiquiátricas e psicológicas, oficinas terapêuticas (violão, crochê e pintura), grupo terapêutico e grupo familiar (voltado para a família do paciente).


O Centro fica localizado na Avenida Guaporé com Vieira Caúla, número 3929, no bairro Agenor de Carvalho, com o horário de funcionamento de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. Para entrar em contato por WhatsApp, o número de telefone é (69) 98473-2898.

O nome do projeto “Começar de novo” por si só é significativo, mas também há uma música escrita por Ivan Lins e Vítor Martins, compositores brasileiros, que complementa ainda mais: “Começar de novo e contar comigo. Vai valer a pena ter amanhecido. Ter-me rebelado. Ter-me debatido. Ter-me machucado. Ter sobrevivido. Ter criado a mesa. Ter-me conhecido. Ter virado o barco. Ter-me socorrido”.

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